A posse de estado – Filiação

04/03/2013. Enviado por

Trata da relação de parentesco de fato ou socioafetiva, com entendimento dos tribuanais e doutrinarios.

Aqueles que acompanham a mídia e as notícias jurídicas têm se deparado com inúmeras campanhas, principalmente governamentais, pelo reconhecimento da paternidade. Principal programa hoje em andamento, programa “Pai Presente”, deflagrado pelo Conselho Nacional de Justiça em agosto de 2010, já possibilitou o reconhecimento de quase dez mil paternidades em todo Brasil.

O programa Fantástico, da Rede Globo, exibiu a série “Quem é meu pai?”, mostrando o impacto que a falta do registro paterno pode causar na vida uma pessoa. Hoje no Brasil, cerca de 3,5 milhões de estudantes da rede pública e particular não têm em seus registros o nome do pai.

Atualmente, os reconhecimentos não voluntários de paternidade são realizados quase que exclusivamente pelo exame de DNA, apesar de, juridicamente, não ser a única forma de comprovação da filiação. Para fins de conhecimento, o exame é realizado da seguinte maneira, conforme explica o Doutor em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Espírito Santo, Athelson Stefanon Bittencourt:

“Todos os seres humanos têm 46 cromossomos, a metade destes cromossomos são cedidos pela mãe e a outra metade pelo pai. Cada cromossomo é composto por moléculas de DNA (ácido desoxirribonucleico) que constituem os genes, apresentam uma sequência única para cada indivíduo e estão organizados aos pares nos núcleos das células.

O teste de DNA, uma tecnologia relativamente recente que sequencia as unidades formadoras das moléculas de DNA, permite, dentre outras coisas, identificar a paternidade. De nosso DNA, a metade é idêntica ao DNA da mãe e a outra metade ao do pai. E é exatamente esta semelhança que o teste verifica, atingindo certezas de paternidades com níveis altíssimos, superiores a 99,9%.

Na prática, este grande percentual não deixa dúvidas sobre a paternidade, e só não atinge 100% porque existem variações genéticas naturais durante o processo de formação e desenvolvimento dos indivíduos, inclusive nos gêmeos idênticos (univitelinos), que segundo o geneticista Carl Bruder, da University of Alabama em Birmingham, não possuem o DNA totalmente igual. Esta pequena diferença pode, inclusive, ser utilizada para distinguir a paternidade ou autoria de um crime, entre dois gêmeos univitelinos.

Numa linguagem simples, nosso DNA corresponde a um livro de receitas, onde cada gene corresponderia a uma receita para fazer uma proteína, e através destas proteínas teremos nossas características determinadas. Características que são transmitidas de pai para filho.

Os genes se apresentam aos pares, um que recebemos da mãe e outro que recebemos do pai, os quais são chamados de alelos, que possuem um endereço específico (locus) nos cromossomos. Comparativamente, imagine um prédio com centenas de andares e dois apartamentos por andar. Nesta comparação, o prédio seria o cromossomo, o andar seria o locus, e os apartamentos de cada andar seriam os alelos (genes).

Mesmo sendo a maioria dos genes iguais entre as pessoas, algumas sequências do DNA variam de pessoa para pessoa. É pela análise dos alelos e respectivo locus, que podemos identificar e determinar o vínculo genético da criança e do hipotético pai.

Quando os alelos do possível pai estão compartilhados no filho, a chance de paternidade tende a ser grande, porém, quando os alelos não estão compartilhados, pode desconsiderar a hipótese de paternidade, pois os alelos do filho que não estão presentes na mãe biológica, consequentemente devem estar no pai biológico da criança.[1]”.

Entretanto, o exame do código genético ou prova testemunhal (como é de praxe admitido nas ações judiciais) não são as únicas formas do reconhecimento. “Vários ordenamentos, como o francês, o belga e canadense (Código Civil de Québec), preveem a figura da “posse de estado” como meio de estabelecer a filiação”, ou paternidade socioafetiva.

Como bem explica Pedro Belmiro Welter (p. 285), “os pais são aqueles que amam e dedicam a sua vida a uma criança ou adolescente, que recebe afeto, atenção, conforto, enfim, um porto seguro, cujo vínculo nem a lei e nem o sangue garantem”.

Por assim dizer, a Constituição Federal previu diversos princípios norteadores do direito de família, como a proteção de todas as espécies de família (art. 226 caput, §§ 3° e 4°), igualdade entre os filhos havidos fora ou não do casamento (art. 226, § 6º), proteção integral da criança, do adolescente e do jovem (art. 227) e, por fim e não menos importante, o princípio da paternidade responsável (art. 226, §7º).

Com fulcro nos dispositivos constitucionais alhures, o critério puramente biológico para caracterização da filiação tornou-se inócuo e insuficiente para atender aos anseios da Constituição, que buscou mais especificamente suprir às expectativas sociais. Assim, apesar não prevista expressamente no Código Civil brasileiro, a filiação socioafetiva é possível de ser caracterizada e não representa desprezo com o liame genético, mas demonstra a necessidade de se inserir uma ligação afeto-social à relação pai-filho.

“A “posse de estado” trata-se de um conceito puramente social, independentemente da verdade biológica, e estabelecido por uma prova factual. Assim, por meio do exame dos fatos, os juízes poderão estabelecer se tal relação tem ou não natureza de vínculo de filiação, vale dizer, a filiação pode ser determinada por uma série de fatos e circunstâncias que cercam as partes” (LOUREIRO, p. 21).

O artigo 1.605[2] do Código Civil de 2002 prevê como prova da filiação “veementes presunções resultantes de atos já certos”. Assim, o estado de filiação pode ser comprovado, por exemplo, pelo “uso do nome paterno, tratamento afetivo e a reputação ou notoriedade de serem tidos como pais e filho, fatos que estabelecem a posse de estado, podem ser considerados fortes presunções resultantes de fatos já certos a determinar a filiação. Fatos tais como possuir o nome do pretenso pai (nomen), ser por este tratado como filho (tractus) e ser conhecido como filho de tal pessoa (fama) constituem veementes presunções da relação de filiação entre duas pessoas.” (LOUREIRO, p. 20/21).

Apesar de não ser uma exigência legal, a posse destes três status sociais (nome, trato e fama) são de inegável importância para a caracterização do elo socioafetivo, pois normalmente sugerem a posse de estado de filho.

Assim, o nome sugere a utilização do nome de família, apesar da sua falta não descaracterizar o estado de filiação. A fama é a exteriorização da realidade para o publico “diante de atitudes do hipotético pai para com o hipotético filho, levando terceiros a acreditar que exista uma relação paterno-filial entre eles” (LEITÃO e TOMASZEWSKI, p. 15), já o trato é o tratamento dispensado pelo suposto pai ao suposto filho, amando-o, criando-o e educando-o como tal.

O estado de filiação representa forte vínculo entre os indivíduos, de maneira que, regra geral, nem mesmo a verdade biológica prevalecerá. O Conselho da Justiça Federal editou o Enunciado 256 da III Jornada de Direito Civil: “Art. 1.593. A posse de estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”, igualando juridicamente ao parentesco biológico.

Silvio de Salvo Venosa (p. 284), com a maestria que lhe é peculiar, observa:

“Lembremos, porém, que a cada passo, nessa seara, sempre deverá ser levado em conta o aspecto afetivo, qual seja, a paternidade emocional, denominada socioafetiva pela doutrina, que em muitas oportunidades, como nos demonstra a experiência de tantos casos vividos ou conhecidos por todos nós, sobrepuja a paternidade biológica ou genética. A matéria é muito mais sociológica e psicológica do que jurídica. Por essas razões, o juiz de família deve sempre estar atento a esses fatores, valendo-se, sempre que possível, dos profissionais auxiliares, especialistas nessas áreas”.

O STJ coaduna com este entendimento de modo a fazer prevalecer em suas decisões o parentesco socioafetivo. Vale lembrar que, não raro, pais socioafetivos questionam na justiça sua paternidade, alegando não serem pais biológicos. Porém o reconhecimento voluntário da filiação não pode ser revogado, salvo em casos de vício de vontade: “salvo na hipótese de erro, dolo, coação, simulação ou fraude, a pretensão de anulação do ato, havido por ideologicamente falso, deve ser conferida a terceiros interessados, dada a impossibilidade de revogação de reconhecimento pelo próprio declarante, na medida em que, descabido seria lhe conferir, de forma absolutamente potestativa, a possibilidade de desconstituição da relação jurídica que ele próprio, voluntariamente, antes declarara existente; ressalta-se, ademais, que a ninguém é dado beneficiar-se da invalidade a que deu causa”.[3]

Por isso mesmo, a jurisprudência vem conferindo alto valor probatório ao estado de filho, para conferir, de maneira subsidiária, prova ou elemento de convicção do julgador a respeito de certa paternidade, exercendo, assim, papel valioso na resolução de conflitos, informando negativa ou positivamente uma paternidade, pelo fato do afeto indicar a relação paterno-filial, que mais atende aos preceitos constitucionais da paternidade responsável e à proteção integral da criança e do adolescente.

No exame destas circunstâncias, deve ser sopesados “o amor e a preocupação dispensado ao filho; um ambiente tranquilo e saudável que propicie à criança uma boa formação moral e a sua integridade física; a habitualidade no oferecimento de alimentação, vestuário, assistência médica e odontológica, educação e abrigo; relacionamento baseado no repeito; a idade da criança; o bem estar do menor; as condições materiais e pessoais dos pais; e qualquer outro fato que demonstre qual é o melhor interesse da criança” (LEITÃO e TOMASZEWSKI, p. 15).

Em recente julgamento, o STJ se mostrou claramente adepto à teoria do estado de filiação. O Ministro Luis Felipe Salomão proferiu o seguinte voto, o qual se transcreve em parte: “em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e a Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. (...) A pretensão voltada à impugnação da paternidade (...) não pode prosperar quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva”.

Explicou ainda o relator não ser novo na doutrina o reconhecimento de que a negatória de paternidade, disposta no artigo 1.601 do Código Civil, submete-se a outras considerações que não a simples base da consanguinidade. Segundo ele, “exames laboratoriais hoje não são, em si, suficientes para a negação de laços estabelecidos nos recônditos espaços familiares. (...) A paternidade atualmente deve ser considerada gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a socioafetiva”.

WELTER (p. 288) acrescenta ainda que não é de bom alvitre a fixação de lapso prazal para determinação do estado de filiação, uma vez que as situações devem ser analisadas na singularidade de cada caso, “no momento em que a questão é posta em juízo, debruçando-se nos fatos postos no agora, na hora, no instante em que são debatidos”.

Segundo Manuela Nishida Leitão e Adauto de Almeida Tomaszewski (p. 18) são considerados espécies de filiação socioafetiva: “a adoção judicial (verdadeiro ato de amor, que não se baseia na existência de laços sanguíneos), filho de criação (que ocorre quando alguém assume uma criança como seu filho, inexistindo vínculo jurídico ou biológico entre eles), a adoção à brasileira (que consiste em registrar uma criança como se fosse seu filho, sem observar as exigências e formalidades legais da adoção), o reconhecimento de filho (que é a declaração de existência de filho havido fora do casamento), a reprodução humana assistida (que com os avanços científicos estabeleceram-se novas bases para o estabelecimento da filiação) e a presunção pater is est (na qual o marido da mãe age como pai, independentemente de ser ou não o genitor)”.

Importante destacar, porém, que o entendimento acerca da filiação socioafetiva não é unânime, visto que parte da doutrina considera o reconhecimento de estado de filho, sem expressa previsão legal, atividade legiferante do magistrado, ferindo assim o princípio da tripartição dos poderes. Este não é, no entanto, o entendimento dominante pelas razões demonstradas em linhas anteriores.

Portanto, o instituto da posse de estado privilegia o aspecto social e afetivo das relações patriarcais, sem, no entanto, afastar a verdade biológica. Logo a paternidade pode advir da verdade genética ou de fatos sociais, desenvolvidas cotidianamente, pois se o afeto foi capaz de superar a ausência de vínculo biológico, não é justo desconstituir tal união, por ter a criança encontrado o amor que precisa em outra família.

Autor: Bruno Bittencourt Bittencourt

 

FONTES:

LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos. Teoria e Prática. – 2. ed. – Rio de Janeiro : Forense ; São Paulo : Método, 2011.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. v. 6. 4. ed. São Paulo; Atlas, 2004.

WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2003.

LEITÃO, Manuela Nishida; TOMASZEWSKI, Adauto de Almeida. Filiação Socioafetiva: A Posse de Estado de Filho Como Critério Indicador da Relação Paterno-Filial e o Direito à Origem Genética. Disponível em: http://web.unifil.br/docs/juridica/03/Revista%20Juridica_03-1.pdf. Acessado 11/04/2012.


[1] Texto desenvolvido com exclusividade para Revista SINOREG-ES pelo Professor Athelson Stefanon Bittencourt, Doutor em Ciências Fisiológicas pela UFES, Professor do Departamento de Morfologia da UFES e Coordenador do Museu de Ciências da Vida – UFES (acesse: www.ufes.br/corpohumano).

[2]Art. 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito: I - quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente; II - quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.

[3] RE 1999/0093923-9, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 22.09.2007)

Assuntos: Direito Civil, Direito de Família, Direito processual civil, Família, Filhos, Guarda dos filhos

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