17/10/2013. Enviado por Dra. Aricele Araujo
Introdução
O presente artigo origina-se de monografia inédita apresentada, em Junho de 2010, como requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito pela Universidade Tiradentes, sob a orientação do professor Raimundo Giovanni, e aprovada com distinção e indicação para publicação pela banca. O tema escolhido foi fruto de experiência prática vivida durante o estágio desenvolvido na 5ª Promotoria de Justiça Distrital de Aracaju (Ministério Público de Sergipe). Foi tomando conhecimento de um processo no Fórum Integrados I, em Aracaju, que o tema veio à tona.
O presente trabalho versa sobre a importância do direito à identidade pessoal dos transexuais. É sabido que os elementos individualizadores da pessoa humana são: o nome, o estado e o domicílio.
O nome, em especial, identifica e individualiza um indivíduo dentro da sociedade. O direito à identidade pessoal é o direito que tem todo indivíduo de ser reconhecido em sociedade por denominação própria e está garantido pela Carta Magna e em Legislação Infraconstitucional. O referido direito caracteriza-se por ser um direito absoluto, imprescritível,irrenunciável, inalienável, impenhorável, intransmissível e personalíssimo.
O direito à identidade é uma espécie dos Direitos da Personalidade e tem o nome como o principal elemento individualizador da pessoa humana e, no caso do transexual, além do nome, assume também relevância o direito à identidade sexual, que se traduz, neste caso, no direito de ser reconhecido pelo sexo e de acordo com a sua íntima convicção (sexo psicológico).
Nesta obra, a temática da transexualidade, controvertida, atual e relevante no universo jurídico, é o objeto de estudo, onde serão apresentadas a sua definição, sua classificação, a diferença entre os demais fenômenos da sexualidade, também será visto em que se consiste à cirurgia, além disso, a possibilidade de alterar o nome e sexo no Registro Civil de Nascimento do transexual, submetido à cirurgia de redesignação sexual. Diante da ausência de uma legislação específica no Brasil, o que se objetiva é contribuir para o esclarecimento da questão, colacionando entendimentos doutrinários e jurisprudenciais atuais do assunto, analisando o problema do transexual quanto à retificação ou mudança do seu Registro Civil com o fim de preservar o seu bem-estar físico, psíquico e social e sua inserção na sociedade.
Através de uma ampla pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, utilizando-se de metodologia crítica e hermenêutica, inúmeras reflexões foram tecidas, originando um olhar jurídico diferente acerca dos direitos dos transexuais, onde se perceberá, ao final desse estudo, que a cirurgia, per si, não dará a efetividade necessária aos direitos personalíssimos do transexual. Isso porque, haverá discordância entre o sexo morfológico (pós-cirurgia) e o sexo civil e será mostrado que, mesmo não existindo lei específica para os transexuais, compete ao Estado promover, através dos princípios da dignidade humana, da igualdade, da liberdade e do direito à saúde, o bem estar psicológico e físico desses cidadãos.
1. Transexualismo
O cerne da discussão acerca do transexualismo, ou síndrome da disforia sexual ou do gênero, está em saber se seria possível à cirurgia de redesignação do sexo e se é possível ao juiz deferir a alteração do prenome e do sexo no Assento de Nascimento no Registro Civil do transexual e, mais ainda, como seria esse procedimento: seria feita uma averbação no Registro Civil antigo ou este seria cancelado e haveria a confecção de um novo.
A temática provoca reflexos em várias áreas da Ciência, tais como, a Medicina, a Psicologia e o Direito. O direito à identidade pessoal e o direito à identidade sexual constituem direitos da personalidade inerentes à dignidade da pessoa humana, princípio basilar da Constituição Federal de 1988. O enfoque jurídico que se pretende aqui é mostrar a possibilidade do transexual exercer os seus direitos da personalidade, mesmo com a falta de lei brasileira para protegê-lo, através de esclarecimentos sobre a questão, colacionando entendimentos doutrinários e jurisprudenciais atuais sobre o assunto.
Outras denominações são dadas ao transexualismo, tais como, transexualidade, neurodiscordância de gênero, trangeneralismo, hermafroditismo psíquico, ou síndrome da disforia sexual ou do gênero, etc., e é entendido pela Medicina e, em particular, pela Medicina Legal, como uma patologia da sexualidade humana, e, de acordo com Genival Veloso de França (2004, p.235), citando a definição de Roberto Farina (1982), é:
“[...] uma pseudo-síndrome psiquiátrica, profundamente dramática e desconcertante, na qual o indivíduo se identifica com o gênero oposto. Trata-se, pois, de uma inversão psicossocial, uma aversão e uma negação ao sexo de origem, o que leva esses indivíduos a protestarem e insistirem numa forma de cura através da cirurgia de reversão sexual, assumindo, assim, a identidade do seu desejado gênero.”
O ilustre Silvio Venosa observa que "o transexual não redesignado vive em situação de incerteza, angústia e conflitos o que lhe dificulta, senão impede de exercer as atividades inerentes aos seres humanos." (VENOSA, 2003, p. 223)
A doutrinadora Aracy Augusta Leme Klabin (apud LACERDA, 2007, p.2) define da seguinte forma:
“O transexual é um indivíduo, anatomicamente de um sexo, que acredita firmemente pertencer ao outro sexo. Essa crença é tão forte que o transexual é obcecado pelo desejo de ter o corpo alterado a fim de ajustar-se ao “verdadeiro” sexo, isto é, ao seu sexo psicológico”
Pela Classificação Internacional de Doenças, o transexualismo é considerado um transtorno e é classificado pelo CID10 (F 64.0), como:
“F64 - Transtornos da identidade sexual:
F64.0 – Transexualismo - Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado.” (grifo nosso)
Assim, o transexualismo é considerado uma desordem da sexualidade, de ordem psicológica e médica, que se caracteriza por uma inversão da identidade de gênero do indivíduo, que conduz a uma neurose obsessiva, e se traduz em uma identificação psicológica oposta aos órgãos genitais externos e, além de um desejo compulsivo de modificação do sexo morfológico.
A pessoa portadora desse transtorno rejeita o sexo original, não aceita manter relações sexuais com pessoa que possui o mesmo sexo psicológico que o seu e vive em constante estado de insatisfação. Há uma necessidade psicológica imutável de mudar o seu sexo morfológico.
Segundo Berenice Dias (2009, p. 234), o processo de redesignação do sexo,
“começa com o vertir-se como o outro sexo, passa por tratamento hormonal e terapêutico e impõe a realização de inúmeras cirurgias. Não é um processo passageiro. É a busca consistente de integração física, emocional, social, espiritual e sexual, conquistada com muito esforço e sacrifícios por pessoas que vivem infelizes e muitas vezes depressivas quanto ao próprio sexo.”
O Dr. Harry Benjamin, um médico norte-americano, cuja especialidade era clínico geral e endocrinologia, mais tarde, veio a interessar-se por temas ligados à transexualidade. Então, em 1966, publicou sua obra de maior importância, O Fenômeno Transexual (BENJAMIN, 1966). Nesta obra, o termo “transexualismo” foi dito pela primeira vez. Nela, também, ele apresentou a “Escala” com os tipos de transexuais, classificando em:
“TIPO I - Pseudo Travesti; TIPO II - Travesti Fetichista; TIPO III - Travesti Verdadeiro; TIPO IV - Transexual do tipo não-cirúrgico; TIPO V - Transexual Verdadeira (Intensidade Moderada); TIPO VI - Transexual Verdadeira (Alta Intensidade)”
Outros cientistas classificam o transexualismo em primário e secundário, a exemplo da professora Aracy Augusta Leme Klabin (apud LACERDA, 2007, p. 4):
“O transexual primário é um indivíduo anatomicamente de um sexo, que acredita firmemente pertencer ao outro, este indivíduo é obcecado pelo desejo de ter o corpo alterado a fim de ajustar-se ao verdadeiro sexo, isto é, ao sexo biológico.
[...]
O transexual secundário é completamente diferente do transexual primário, sendo que, o secundário aceita sua situação e seu corpo [...]”
O transexual é marcado por uma vida de frustrações, angústias, tendo que conviver com problemas na escola, no trabalho, na vida social, no lazer, nas suas relações familiares e amorosas, devido à falta da correta identificação entre o sexo biológico (real) e o psicológico (desejado), devido à pressão social que espera que seu comportamento seja de acordo com o sexo que aparenta ou o anotado em seu Registro Civil. Em decorrência, busca incessantemente o ajustamento jurídico do seu registro como forma de, finalmente, enquadrar-se perante a sociedade. Essa luta compreende duas fases: 1) a realização da cirurgia de correção do sexo; e 2) a posterior alteração do assento de nascimento.
2. Sexualidade humana: conceitos e diferenças
A palavra “sexo” possui duas acepções diferentes: a) é o ato sexual propriamente dito e b) é o gênero (masculino e feminino) que define a pessoa morfologicamente considerada, de acordo com o tipo genital externo.
O sexo é uma categoria anatômico-biológica e o gênero é uma categoria histórico-cultural. O papel do gênero é a expressão pública da identidade. Para a Psicologia, sexo e sexualidade não se confundem. A sexualidade possui um sentido amplo, enquanto o sexo, um sentido restrito. O sexo conota um ato fisiológico. A sexualidade conota a totalidade do ser humano, é um conceito mais complexo que leva em conta aspectos físicos, religiosos, jurídicos, psico-emocionais e sócio-culturais relativos à percepção e controle do corpo, ao exercício do prazer-desprazer, valores e comportamentos afetivos e sexuais. (FAFIBE, 2010)
A transexualidade é um fenômeno da sexualidade humana que gera efeitos na determinação do sexo, pois seu objetivo principal é adequar o seu sexo físico ao sexo psíquico, através da cirurgia corretiva de sexo.
2.1. Sexo biológico, sexo psicológico e sexo civil
Para se compreender a transexualidade é preciso entender como se estabelece a sexualidade humana. Esta resulta de uma combinação de elementos:
1) o sexo biológico – formado pelo sexo morfológico, sexo genético e sexo endócrino (DIAS, 2009, p. 232): a) sexomorfológico ou somático resulta da soma das características genitais (órgão genitais externos, pênis e vagina, e órgãos genitais internos, testículos e ovários) e extragenitais somáticas (caracteres secundários – desenvolvimento de mamas, dos pêlos pubianos, timbre de voz, etc.);b) sexo genético ou cromossômico é responsável pela determinação do sexo do indivíduo através dos genes ou pares de cromossomos sexuais (XY – masculino e XX - feminino) e; c) sexo endócrino é identificado nas glândulas sexuais, testículos e ovários, que produzem hormônios sexuais (testosterona e progesterona) responsáveis em conceder à pessoa atributos masculino ou feminino.
2) o sexo psicológico – formado pela convicção íntima do indivíduo de pertencer a um determinado sexo. Pode ser: psicossexual, que é o sentimento individual, intrínseco, do gênero sexual a que se pertence; ou psicossocial (sexo de criação), que é o resultado da combinação de fatores genéticos, fisiológicos e psicológicos que se forma dentro do meio onde o indivíduo se desenvolve. (DIAS, 2009, p. 249)
3) o sexo civil ou jurídico ou legal – é aquele que consta no Registro Civil das Pessoas Naturais, determinado pelo critério do sexo biológico, de acordo com a apresentação de sua genitália externa, atribuindo à pessoa a designação de pertencer ao sexo masculino ou feminino. (DIAS, 2009, p. 232)
2.2. Classificação dos fenômenos da sexualidade
Antes de diferenciar o transexualismo dos outros paradigmas da sexualidade, mister se faz explicar o que seja identidade sexual, orientação sexual e comportamento sexual.
A identidade sexual é o conjunto de características sexuais que diferenciam uma pessoa das outras e que se expressam pelas preferências sexuais, sentimentos ou atitudes em relação ao sexo. É a percepção individual sobre o gênero (masculino ou feminino), que a pessoa tem para si mesma (sexo psicológico). Nem sempre está de acordo com a genitália da pessoa. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 29-30)
A orientação sexual ou opção sexual ou preferência sexual é a atração afetiva e/ou sexual que uma pessoa sente pela outra. Ela indica qual o gênero (masculino e feminino) que uma pessoa se sente preferencialmente atraída fisicamente e/ou emocionalmente. A orientação sexual homossexual foi removida da lista de doenças mentais nos Estados Unidos, em 1973, e do CID 10 (Clasificação Internacional de Doenças) editado pela OMS, Organização Mundial da Saúde, em 1993. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 29-30)
O comportamento sexual humano compreende o repertório de experiências e práticas sexuais. É construído a partir de modelos e padrões de condutas. É determinado por três fatores: a) herança genética, que caracteriza biologicamente o indivíduo; b) fator social, composto por influências da sociedade (educação, família) sobre o indivíduo; c) fator psicológico, formado pelos mecanismos psíquicos inconscientes. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 29-30)
Com base nas explicações de Tereza Vieira (2008, p.218-220) e do Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB (2004, p. 29-30), do Conselho Nacional de Combate à Discriminação do Ministério da Saúde, a seguir será descrita a diferença entre os transexuais e os outros fenômenos da sexualidade.
a) Homossexuais: são aqueles indivíduos que têm atração sexual e afetiva por pessoas do mesmo sexo. Por entender que depende da orientação sexual e que não se trata de doença, o Conselho Federal de Medicina em 1993, retirou a homossexualidade do rol da Classificação Internacional de Doenças (CID).A diferença entre o transexual e o homossexual é que este está satisfeito com o seu sexo biológico, com a sua genitália de origem, não deseja adequar o seu sexo, sente-se homem (homossexual masculino), por exemplo, e tem como parceiro um outro homem. O transexual masculino, considera-se mulher, não está satisfeito com o seu sexo biológico e tem como parceiro um homem, vendo essa relação como heterossexual.
b) Bissexuais: são indivíduos que se relacionam sexual e/ou afetivamente com homens e mulheres. Seu comportamento sexual é voltado para ambos os sexos.
c) Travestis: são pessoas que, como forma de obter prazer pessoal e sexual, fazem uso de roupas, maneirismos e atitudes do sexo oposto. Tanto podem ter comportamento homossexual como heterossexual. O travesti não sente repulsa por seu órgão sexual externo como o faz o transexual, este não aceita pertencer àquela fisionomia do seu sexo biológico e não admite ser tocado. Apesar de vestir-se como alguém de outro gênero sexual e, muitas vezes, fazer modificações em seu próprio corpo, como no caso de travesti homem que se transforma em mulher (que implanta próteses de silicone nos seios, deixa o cabelo crescer, ingere hormônios femininos), o travesti admite utilizar-se da genitália para obter prazer durante o sexo, admite ser tocado nesta parte do corpo (OLIVEIRA, 2001).
d) Hermafroditas: também chamadas de intersexuais ou sexo dúbio. São pessoas que possuem órgãos sexuais dos dois sexos. O indivíduo possui a genitália externa e/ou a genitália interna indiferenciadas. São indivíduos que possuem, simultaneamente, os órgãos sexuais internos e externos. São geneticamente de uma forma e o seu órgão sexual externo é de outra. Alguns médicos e psicólogos afirmam que o transexual é uma espécie de hermafrodita psíquico.
e) Transexuais: são pessoas que não aceitam o sexo morfológico de origem. Sendo o fator psicológico predominante na transexualidade, o indivíduo possui genitália externa e interna de um único sexo, mas identifica-se com o sexo oposto. O transexualismo, como já dito, é considerado um transtorno e é classificado pelo CID10 (F 64.0).
3. A cirurgia de transgenilização ou de redesignação sexual
O indivíduo portador, após o diagnóstico de transexualismo, necessita de tratamento para que tenha equilíbrio entre o psíquico e físico, para gozar de saúde e bem-estar. Em tese, teria duas opções: a psicoterapia, para adaptar o sexo psicológico ao anatômico ou o inverso. A psicoterapia é ineficaz para os casos de transexuais verdadeiros. Suas gônadas (ovários e testículos), órgãos que produzem células sexuais necessárias para a sua reprodução, tem histologia normal, porém atrofiadas pela incidência de hormônios do sexo oposto, ou produzidos pelo próprio corpo ou aplicados.
Ou a cirurgiade redesignação de sexo, considerando que o seu distúrbio psíquico possui caráter permanente e imutável. Até agora, esta é a única comprovadamente bem-sucedida. A cirurgia é complexa e irreversível, como será, sucintamente, descrita mais adiante. Antes de ser realizada, o processo de correção de sexo começa da seguinte maneira: o paciente é analisado por uma equipe multidisciplinar de profissionais especializados no assunto e é feita uma avaliação do diagnóstico, onde se emitem pareceres e laudos, a seguir o paciente recebe tratamento psicoterápico, analisa-se a experiência de vida real, se preciso é feito um tratamento com hormônio e, por fim, a cirurgia.Vale registrar que a primeira cirurgia realizada no Brasil foi em 1971, pelo cirurgião plástico Roberto Farina.
A operação corretiva é do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sob gônadas e caracteres sexuais secundários.
A neocolpovulvoplastia (autorizada em hospitais públicos ou privados) é uma cirurgia composta de duas etapas. Na primeira, há ablação do pênis e são retirados os testículos do paciente, após, faz-se uma cavidade vaginal. Na segunda etapa é realizada a constituição plástica, com a pele do saco escrotal são formados os lábios vaginais. (LACERDA, 2007, p. 9-10)
A neofaloplastia (autorizada em hospitais em hospitais públicos ou universitários) é o procedimento cirúrgico no qual um pênis é construído a partir de um tecido sensível retirado do próprio corpo, como o antebraço. A pele do antebraço, então é anexada à região vaginal juntamente com os seus nervos, artérias e veias e formado em torno de um cateter de tubo plástico, que servirá como a uretra e, dessa maneira, permitir a micção, uma vez que foi conectado à uretra feminina. Além da uretra, são formados o eixo e a glande (cabeça). Os nervos do clitóris estão ligados aos nervos enxertados e vai crescer dentro do pênis após a cirurgia. A pele e o tecido dos lábios vaginais são usados para criar um escroto. Apesar disso tudo, não há garantia de que a aparência e o funcionamento do novo órgão serão normais ou razoáveis. (LACERDA, 2007, p. 10-11)
3.1. Critérios
No Brasil não há previsão legal para que as intervenções cirúrgicas corretivas sejam realizadas em transexuais. O Conselho Federal de Medicina reconheceu essa cirurgia como correta e adequada para adequação de sexo e libera eticamente aos médicos a realização da operação desde 2002, quando expediu a Resolução nº. 1.652/02, estabelecendo os critérios de definição do transtorno e os critérios para realização da cirurgia, nos arts. 3º e 4º:
“Art. 3º - Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:
1) Desconforto com o sexo anatômico natural;
2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
4) Ausência de outros transtornos mentais.”
“Art. - 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto:
1) Diagnóstico médico de transgenitalismo;
2) Maior de 21 (vinte e um) anos;
3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.”
A avaliação é por dois anos, nesse tempo o paciente recebe terapia psicológica, a depender, aplica-se hormônios e a equipe multidisciplinar ao constatar que o quadro é irreversível, autorizará a cirurgia. A equipe multidisciplinar é formada por médico, cirurgião plástico, endocrinologista, psiquiatra, neurologista, além de psicólogos e assistentes sociais, que acompanham o paciente durante dois anos. Essa cirurgia pode ser realizada em hospitais públicos ou universitários ou hospitais privados. Inclusive, pelo SUS (Sistema Único de Saúde – Portaria nº. 1.707 de 20/08/2008).
O art. 4º, item 2, da Resolução supramencionada exige que o paciente tenha 21 anos para ingressar no tratamento. Ela é de novembro de 2002 e não levou em consideração que a lei civil, publicada em janeiro de 2002 e em vigor desde 2003, estabeleceu que a maioridade civil ocorre aos 18 anos.A cirurgia leva em conta, ainda, a possibilidade de disposição do corpo humano e o consentimento válido do paciente (capacidade de discernir, maioridade).
3.2. Integridade física e responsabilidade médica
Para alguns julgadores, a cirurgia de adequação do sexo biológico ao sexo psicológico do transexual violaria o princípio da indisponibilidade do corpo humano, por considerá-la mutilante, e o médico cometeria, então, o crime do art. 129, §2º, III, do Código Penal Brasileiro (VIEIRA, 2008, p. 241), que preceitua:
“Art. 129- Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.
[...]
§ 2º- Se resulta:
[...]
III - perda ou inutilização de membro, sentido ou função;
[...]
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.” (grifo nosso)
Este foi o crime que o cirurgião plástico Roberto Farina foi condenado pelo juiz a quo por realizar a cirurgia de redesignação em Waldir Nogueira (Waldirene), em 1971, a primeira no Brasil. Porém, o Tribunal de Alçada Criminal, da 5ª Câmara, de São Paulo o absolveu, por votação majoritária, em 1979, com o argumento de que o médico não agiu com dolo, querendo provocar um dano ao corpo do paciente (mutilá-lo), mas sim pretendia curá-lo ou reduzir o seu sofrimento físico ou mental. O médico praticou o ato no exercício regular de um direito (art. 23, III, do Código Penal).
Analisando o princípio da indisponibilidade do corpo humano que está inserido no direito à integridade física, espécie dos direitos da personalidade, verifica-se que se trata de uma proteção jurídica do corpo humano, vivo ou morto, abrangendo tecidos, órgãos e partes separáveis (CHAVES; ROSENVALD, 2007, p. 118-122).
O indivíduo que desrespeita a incolumidade corporal de outrem, desrespeita a norma constitucional, em conseqüência responde, na seara penal, por crimes contra a vida e por lesão corporal (arts. 121 a 129, do Código Penal).
Entretanto, a Constituição Federal demonstra que esse princípio não é absoluto quando preceitua no seu art. 199, § 4º: