Bem de família

16/07/2012. Enviado por

Leitura geral sobre a instituição e particularidades da Lei 8.009/90 e artigos 1.711 e seguintes do Código Civil

O bem de família é um instituto de proteção de parte do patrimônio considerado indispensável a uma vida digna do ser humano. O homem, desde os primórdios, acumula patrimônio, bens materiais para sua sobrevivência. Desta forma era com os materiais de caça dos nossos ancestrais, cavernas povoadas por determinados grupos, e assim por diante. Atualmente não é diferente, resguardada as proporções.

Um pouquinho de história...

Intimamente ligado ao direito à moradia e ao princípio do mínimo existencial, corolário do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o bem de família tem como fonte histórica o Homestead Act, do Texas-EUA, datado de 1839.

O atual estado americano, logo após conquistar sua independência do México, porém antes de se incorporar aos Estados Unidos, era pouco habitado e com vasta extensão de terras produtivas e férteis. Dada as características geográficas, milhares de americanos e europeus migraram para o então denominado Big Country.

Com a economia aquecida pela agricultura e pecuária e a constante necessidade de investimentos, grandes bancos europeus, principalmente ingleses, viram na República do Texas oportunidade de bons e lucrativos negócios.

Foi então que em 1837 um grande banco nova-iorquino quebrou, fazendo com que os preços dos produtos agrícolas despencassem. Sem possibilidades de pagamento das dívidas, os agricultores e pecuaristas começaram a ser executados pelas instituições financeiras, perdendo tudo, inclusive, suas terras e casas.

Em conseqüência das execuções e perdas se suas moradias, grande parte da população texana começou a voltar para suas terras natais em busca de novas oportunidades. O governo, então, publicou o Homestead Act, o qual não permitia aos credores, principalmente bancos, penhorarem ou leiloarem as residências dos devedores, tudo como forma de incentivo para que lá ficassem e reconstruíssem suas vidas.

Clóvis Bevilaqua enxergou a grandeza da função social do instituto americano e logo tratou de implantá-lo no ordenamento jurídico brasileiro, previsto nos artigos 70 a 73 do Código Civil de 1916. Pautado em alterações substanciais, o atual Código Civil trouxe à baila a regulamentação do bem de família voluntário, disposto nos artigos 1.711 a 1.722 e a Lei 8.009/90 instituiu o bem de família legal.

Instituição e procedimentos

O bem de família voluntário é aquele instituído por ato de vontade do casal, da entidade familiar ou até mesmo de terceiro, mediante registro no cartório de imóveis. Está previsto no artigo 1.711 do Código Civil e, com o fito de evitar fraudes, o legislador estabeleceu valor máximo para fixação, ou seja, o bem de família voluntário não poderá ultrapassar o limite de 1/3 do patrimônio líquido dos seus instituidores. Esta regra não existia no Código de 1916.

Sua instituição se dá por escritura pública ou testamento, devendo ser registrado no cartório de registro de imóveis da circunscrição do imóvel. O registro deverá ser feito no Livro 2 (na matrícula do imóvel) e no Livro 3, conforme determinam os artigos 167, I, 1, combinado com artigo 263, ambos da Lei 6.015/73. Caso seja instituído por testamento, o bem de família será registrado com a apresentação do formal de partilha.

Vale lembrar que as regras contidas na Lei 6.015/73 coexistem com as determinações do Código Civil de 2002, logo, as publicações de que trata o artigo 261 da LRP deverão ser procedidas assim como determina o dispositivo mencionado. Desta forma, não havendo qualquer exigência ou sendo ela sanada, ou eventual dúvida julgada improcedente, o oficial elaborará o edital a ser publicado, observadas as exigência do artigo 262 da LRP. Publicado o edital e havendo prejudicados, estes deverão se manifestar no prazo de trinta dias.

A instituição do bem de família voluntário acarreta dois efeitos fundamentais: a impenhorabilidade (artigo 1.715) e a inalienabilidade (artigo 1.717). Impende destacar que, tanto uma quanto outro, não são absolutos.

Para fins de proteção deste instituto, deve-se considerar todas as formas de família, dentre elas a unipessoal[1], monoparental e, segundo melhor doutrina, após julgamento da ADI 4277 pelo STF, a família homoafetiva.

Já o bem de família legal tem previsão na Lei 8.009/90, que em respeito ao direito constitucional à moradia e a própria noção de patrimônio mínimo, determina uma impenhorabilidade legal e involuntária do imóvel residencial, independentemente de inscrição em cartório.

A própria Lei traz o conceito do instituto em seu artigo 1°: “O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei”.

No corpo da lei (art. 3º) são estabelecidas exceções de impenhorabilidade dos bens de família. Dentre estas hipóteses, reputam-se de maior importância aquelas em que a dívida executada seja proveniente de garantias feitas sobre os próprios imóveis, como a hipoteca e, principalmente, os débitos condominiais, impostos, como IPTU e ITR e créditos de trabalhadores da própria residência (excluídos os trabalhadores eventuais, como pintor, eletricista e etc (STJ -RESP 644733/SC)).

Hipoteca e o bem de família

É pacífico o entendimento de que o bem de família poderá ser levado a registro mesmo que o imóvel já tenha em sua matrícula um registro de hipoteca. Os dois institutos podem coexistir, observado a máxima “prior tempore, potior jure” (primeiro no tempo, melhor no direito), ligado ao princípio da prioridade, o que significa dizer que, hipotecado o imóvel antes da instituição do bem de família, ele poderá, posteriormente, ser executado pela dívida hipotecária.

Em sentido inverso, a jurisprudência também já entendeu que é possível o registro da hipoteca em imóvel já instituído como bem de família: “a lei a é clara, permitindo ser alienado e, portanto, hipotecado o bem de família, com o assentimento dos interessados e de seus representantes legais (...)” (RT 82/276).

Alienação

O bem de família poderá ser alienado por ambos os cônjuges, conforme o caso, e com consentimento de todos os interessados, sempre após a oitiva do Ministério Público, que funciona como fiscal da lei, como parte da proteção constitucional da família, prevista no artigo 226 da Carta Política.

Cancelamento ou extinção

Ao contrário do que ocorre com a alienação, o cancelamento do bem de família dependerá sempre de ordem judicial. Também podem, por pedido feito por todos os herdeiros, ser cancelado o bem de família instituído por testamento, tal questão poderá ser, inclusive, decidida pelo juiz dentro do inventário.

Por fim, extingue-se o bem de família com a morte de ambos os cônjuges ou companheiros e com a maioridade dos filhos, desde que não sujeitos à curatela. Vale lembrar que a dissolução da sociedade conjugal não extingue o bem de família, ainda que o casal não tenha filhos.

Outros regramentos e entendimentos

Para melhor utilização das garantias do instituto não basta a simples leitura da legislação. Em diversos precedentes, o STJ e alguns tribunais estaduais decidiram sobre minúcias da aplicabilidade da lei. Enumeramos a seguir alguns entendimentos, inclusive sumulados, vejamos:

  • STJ - Súm. 205 - a lei 8.009/90 aplica-se à penhora realizada antes de sua vigência.
  • STJ – Súm. 49 - A vaga de garagem que possui uma matrícula própria no registro de imóveis não constitui bem de família para efeito de penhora.
  • Se houver dois imóveis residenciais e que a família alternadamente viva, nos termos doa artigo 5º da Lei 8.009, a proteção legal recai no de menor valor, salvo se o imóvel mais valioso houver sido inscrito como bem de família voluntário.
  • O STJ, em mais de uma oportunidade, admitiu o desmembramento de um imóvel (bem de família legal) para efeito de penhora (RESP 968907/RS).
  • Em recente decisão, o TRT mineiro determinou a penhora de bem família considerado suntuoso para pagamento de dívida trabalhista, sob o argumento de que “[...]a Lei 8.009/90 não poderia ser utilizada como escudo para o devedor se eximir de sua obrigação de pagar crédito do trabalhador, de natureza alimentar, pois, conforme apurado pelo oficial de justiça, o imóvel penhorado é suntuoso, está localizado em área nobre de Contagem, contém diversas benfeitorias e está avaliado em R$ 650.000,00 [...]”. (Processo 0054900-21.2006.5.03.0031 AIRR).
  • O artigo 2º da Lei 8.009 exclui da sua proteção veículo de transporte, obras de arte e adornos suntuosos. A jurisprudência já decidiu, quanto aos bens móveis protegidos: computador, a televisão, o ar condicionado e até mesmo um teclado musical (RESP 218882/SP).
  • O STJ já firmou entendimento, em mais de uma oportunidade, que a renda proveniente do imóvel residencial locado é protegido pelas normas do bem de família (AGRG RESP. 975858/SP).

Quadro sinóptico[2]

- Instituição: Escritura pública ou testamento

- Pode ser instituído por terceiro, mediante doação ou testamento

- Registro nos livros 2 e 3 do Serviço de Registro de Imóveis

- Objeto: prédio residencial e valores mobiliários

BEM DE FAMÍLIA           

- Limite: não pode ultrapassar 1/3 do patrimônio líquido

- Pode ser alienado com anuência de todos e autorização do MP

- Para extinção do bem de família é necessária ordem judicial

- Não isenção de tributos referentes ao imóvel e taxa condominial

- Título: Escritura pública de instituição, de doação ou formal de partilha

- É possível o registro ainda que haja registro anterior de hipoteca

REGISTRO

- Procedimento: prenotação, qualificação, publicação do edital e registro

- Havendo impugnação, é cancelada a prenotação

- Cancelamento do registro: ordem judicial

 

Bibliografia:

CENEVIVA, Walter. Lei do registros públicos comentada – 19. ed. – São Paulo : Saraiva, 2009.

GLAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo. Novo curso de direito civil – direito de família. Saraiva : 2011

LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos. Teoria e Prática. – 2. ed. – Rio de Janeiro : Forense ; São Paulo : Método, 2011.



[1] STJ -  Súm. 364: “O conceito de impenhorabilidade e bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”.

[2] Fonte: Luiz Guilherme Loureiro – Registros Públicos : Teoria e Prática – 2011. p. 307.

Assuntos: Bem de família, Direito de Família, Direito imobiliário, Direito processual civil, Família, Moradia

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