12/09/2012. Enviado por Sr. Bruno Bittencourt Bittencourt
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
A personalidade jurídica é considerada pela doutrina uma aptidão genérica conferida pela lei para que um determinado ente ou pessoa seja considerado sujeito de direito, capaz de direitos e obrigações na vida civil.
A princípio, somente as pessoas naturais (ou físicas) possuíam personalidade jurídica. No entanto, para melhor satisfazer aos interesses sociais e comerciais, foi necessário haver uma diferenciação, uma desvinculação, ou seja, cria-se um ente autônomo com direitos, patrimônio, obrigações e responsabilidades distintas, não se confundindo com as pessoas de seus membros. A este ente com “vida” própria e independente, deu-se o nome de Pessoa Jurídica.
As pessoas jurídicas estão previstas no Código Civil brasileiro e dividem-se em: pessoas jurídicas de direito público interno (art. 41), pessoas jurídicas de direito público externo (art. 42) e pessoas jurídicas de direito privado (art. 44).
Estas últimas, tema deste trabalho, estão expressas, de maneira não exaustiva, segundo parte da doutrina, no artigo 44 do Código Civil brasileiro, e são elas: as associações, as sociedades, as fundações, as organizações religiosas, os partido políticos, e a mais recente criação legislativa, a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), criada pela lei 12.441, de 11 de julho de 2011.
A existência da pessoa jurídica depende basicamente de dois requisitos: o substrato, que é o seu ato constitutivo; e a concessão de sua personalidade, que é o registro.
O registro civil das pessoas jurídicas, que é o ato de seu nascimento, da sua existência no mundo jurídico, tem natureza constitutiva, e será feito no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas ou na Junta Comercial, a depender da natureza do ente a ser registrado.
Efetivado o registro, observar-se-á o surgimento de quatro efeitos precípuos, de natureza pessoal, patrimonial, processual e obrigacional, vejamos:
Efeito pessoal: com o registro nasce uma pessoa que se distingue dos seus sócios, associados ou membros;
Efeito Patrimonial: distinção do patrimônio pessoal dos sócios e da pessoa jurídica. Há uma limitação do risco.
Efeito Processual: quando a pessoa jurídica aciona ou é acionada, é ela quem o faz, e não seus sócios ou associados.
Efeito Obrigacional: todas as obrigações são da pessoa jurídica, e não de seus sócios.
Quanto aos efeitos patrimoniais, a pessoa jurídica terá patrimônio próprio, o qual não se confunde com o patrimônio dos seus sócios. Porém, na prática, não é raro observamos abusos deste direito, praticados, normalmente, pelos sócios ou administradores, prejudicando eventual credores.
Pautado nestes possíveis prejuízos e possibilidade de fraude, surge a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que vem anglo-saxônica disregard doctrine (ou disregard of legal entity) e da germânica durchgrift (tradução: penetração, através de). Tal teoria tem origem no julgado inglês do final do século XIX, Salomon x Salomon Company, e desenvolveu-se, posteriormente, na Alemanha e na Itália. No Brasil, Rubens Requião foi precursor no tratamento do tema, no final dos anos 1960, criando, inclusive, a atual denominação. Ele defendia a utilização do instituto pelos juízes independentemente de especificação legal, tamanha sua importância.
Apesar dos primeiros precedentes datarem do final do século XIX, o Código Civil de 1916 não disciplinou a doutrina da desconsideração, que seria consagrada, mais tarde, por meio de leis especiais. No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11/09/1990) foi pioneiro no assunto, consagrando a teoria em seu artigo 28, também conhecida como “Levantamento do véu”.
Por falta de previsão legal, os tribunais valiam-se do artigo 135 do Código Tributário Nacional, que responsabilizava pessoalmente os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado por créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com “excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos”.
Atualmente prevista no artigo 50 do Código Civil, a doutrina da desconsideração pretende o afastamento temporário da personalidade da pessoa jurídica para permitir que o credor satisfaça o seu direito no patrimônio pessoal do sócio ou administrador que cometera o ato abusivo. Não só sociedades empresárias, mas pessoas jurídicas em geral e até entidades filantrópicas estão sujeitas à doutrina da desconsideração (enunciado 284, da 4ª jornada).
Para sua caracterização a doutrina enumera alguns requisitos: Descumprimento da obrigação (ou insolvência); e abuso cometido pelo sócio ou administrador, por desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
O desvio de finalidade está ligado à discrepância entre a atividade, de fato, realizada pela pessoa jurídica e aquela que ela deveria realizar, na teoria. Como exemplo, uma empresa que tinha como finalidade a venda de carnes, frutas e peixes e, na verdade, empresta dinheiro a juros abusivos.
A confusão patrimonial ocorre, por exemplo, quando pelo exame da escrituração contábil ou contas bancárias é possível a constatação de que a sociedade paga dívidas particulares dos sócios ou este recebe créditos dela, ou o inverso, ou constatar-se a existência de bens de sócios registrados em nome da sociedade.
O Código Civil brasileiro adotou a Teoria Maior da desconsideração da pessoa jurídica, mais difícil de ser aplicada, pois, além do descumprimento da obrigação (insolvência), exige ainda a prova do abuso caracterizado pela confusão patrimonial ou pelo desvio de finalidade.
O requisito do ‘dolo específico’, no entanto, não é mais acatado pela doutrina moderna pela dificuldade de comprovação. Na linha objetivista de Fábio Konder Comparato, podemos concluir pela desnecessidade de se demonstrar a intenção (dolo específico) do sócio ou administrador em cometer o ato abusivo, basta apenas a configuração dos requisitos expostos nos parágrafos anteriores.
Ainda, a desconsideração da pessoa jurídica é matéria sobre reserva de jurisdição, ou seja, somente o juiz poderá decretá-la. No entanto, de forma excepcionalíssimas, o STJ aceitou, em um caso específico, que a administração pública (em processo administrativo) desconsiderasse a pessoa jurídica sem passar pelo Judiciário, por ter havido uma grave fraude à lei, com fundamento no princípio da moralidade e indisponibilidade do interesse público (confira: Recurso em Mandado de Segurança - 15166/BA).
É também admitida pela doutrina[1] (Fábio Konder Comparato) e jurisprudência[2] a chamada desconsideração “inversa” da pessoa jurídica, hipótese em que é afastada a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio (pessoa física). Clássico exemplo é a hipótese de um dos cônjuges registrar imóvel de alto valor em nome da pessoa jurídica sob seu controle, a fim de que este bem não entre na partilha em eventual processo de divórcio. Assim, será possível responsabilizar a pessoa jurídica pelo devido ao ex-cônjuge do sócio.
Por fim, por ser uma sanção, a decisão que decretar a desconsideração da pessoa jurídica deverá ser devidamente fundamentada, respeitada todas as garantias inerentes ao devido processo legal, só se aplicando àquele que praticou o ato ou que dele se beneficiou.
Portanto, a doutrina da desconsideração é um meio de garantir ao credor o pagamento de dívida cuja adimplência seja prejudicada pelo véu de proteção dada à pessoa jurídica. O instituto nada mais é do que o afastamento temporário da personalidade, não modificando, tampouco extinguindo o ente jurídico.
Bibliografia
GLAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo. Novo curso de direito civil – parte geral. Saraiva : 2011
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos. Teoria e Prática. – 2. ed. – Rio de Janeiro : Forense ; São Paulo : Método, 2011.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro : parte geral : v. 1 – São Paulo : Saraiva, 2003.
[1] Enunciado 283, da 4ª Jornada - Art. 50. É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros.
[2]Agravo de Instrumento - Ação Civil 33453/01, da 16ª Vara Cível de São Paulo.