16/03/2015. Enviado por Equipe MeuAdvogado em Família
Para a Lei não basta pagar pensão alimentícia; os pais precisam participar ativamente na criação e educação dos filhos
Recentemente, uma decisão inédita no Brasil chamou a atenção da sociedade. Trata-se do pai que terá de pagar uma indenização de R$ 200 mil para sua filha por abandono afetivo, em Votorantim, interior de São Paulo.
O Superior Tribunal da Justiça (STJ) entende que não é preciso apenas pagar a pensão alimentícia, mas também dar atenção e acompanhar o crescimento dos filhos.
Para compreender melhor o que é abandono afetivo e quando ela é caracterizada pela Lei, conversamos com a Dra. Ana Paula Pires Trevisan:
MeuAdvogado: Para a justiça, o que é considerado abandono afetivo e como tratar esta questão?
Dra. Ana Paula Pires Trevisan: Primeiramente, é necessário trazer alguns pequenos apontamentos sobre o Direito de Família em vigor, os entendimentos anteriores e as novas interpretações que visam à proteção das relações familiares. Há constantes mudanças na sociedade e o Direito busca acompanhar os novos paradigmas, mas isto não implica na sua total efetividade. Um exemplo é o Código Civil de 1916, que impedia a dissolução do matrimônio. Apenas em 1977 foi regulamentado o divórcio, ainda com ressalvas sobre o período que o antecederia, a separação. Hoje em dia a sociedade modifica seus padrões ou os expande tão velozmente que mais sorte teremos ao acompanhar um princípio norteador quando na busca de proteção de um direito, do que a espera em positivar um novo regulamento.
Nosso ordenamento jurídico, espelhado no Código Napoleônico, preocupou-se com a defesa do patrimônio ao preconizar ressarcimentos a danos, não necessariamente na relevância dos aspectos emocionais dentro dos relacionamentos interpessoais. Por isso o Direito Positivo encontra barreiras em acompanhar os novos paradigmas familiares e buscar respaldo jurídico para a compensação de atitudes que nem sempre são consideradas ilícitas, e daí a dificuldade.
Todavia, é possível encontrar o direito ao afeto na Constituição Federal. A dignidade da pessoa humana disposta no artigo 1º, inciso II da Carta Magna abrange este conceito, a igualdade de todos os filhos, independentemente de suas origens (Art. 226, parágrafo 6º), o direito à adoção em virtude de afeto – filiação sócio afetiva (Art. 227, parágrafos 5º e 6º), bem como o direito à convivência familiar, previsto no artigo 226, parágrafo 4º. São vários artigos que poderiam ser interpretados como protetores do direito ao afeto.
A palavra afetividade, inclusive, é utilizada nos textos legais. O parágrafo único do artigo 1584 do Código Civil de 2002 dispõe que, quando for observado que os filhos não devem permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, o juiz deferirá a sua guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, levando em consideração o grau de parentesco e relação de afinidade e “afetividade”, nos termos da legislação específica.
O abandono afetivo seria, portanto, o descumprimento injustificado do dever de sustento, da assistência moral e material, guarda e educação, até mesmo a resistência no reconhecimento de paternidade. Todavia, extrapolar esta matéria da punição e consequente perda do pátrio poder (artigo 24 do Estatuto da Criança e e 1.638, do Código Civil) ainda não está totalmente pacificado.
Seguem alguns entendimentos em nossa jurisprudência:
“A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do artigo 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária” (STJ - REsp nº 757.411 MG, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 29 de novembro de 2005).
INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL – 7 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana (Acórdão do Tribunal de Alçada de Minas Gerais - AC nº 408.550-5, de 01.04.2004 7ª Câmara Cível).
A decisão comentada gerou a seguinte ementa:
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido. (REsp 1159242 / SP RECURSO ESPECIAL 2009/0193701-9 Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI (1118) Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA)
MeuAdvogado: Caso seja provado que a mãe sempre impediu o pai de visitar e participar da vida do filho, como serão feitos os cálculos para esta indenização? Poderá haver o cancelamento desse valor a ser pago pelo pai?
Dra. Ana Paula Pires Trevisan: Se comprovado o impedimento por parte de um dos genitores de o outro participar da vida do filho, no meu entendimento, não haveria indenização. Isto porque, para gerar algum tipo de punição, o genitor deveria deliberadamente abandonar o filho, de forma culposa em seu sentido amplo e, se a mãe gerou uma condição que impossibilite o convívio com o outro genitor, não há que se falar em responsabilidade. O genitor não pode ser omisso.
MeuAdvogado: No caso citado, o pai possui bens e tem condições de pagar devida indenização, mas para os casos contrários, pais com baixo poder aquisitivo, o que deverá ocorrer?
Dra. Ana Paula Pires Trevisan: O campo da indenização no Código Civil leva em consideração a razoabilidade na condenação, apurando-se para tanto os seguintes fatores: a gravidade da conduta culposa, os danos causados e as possibilidades do demandado. Assim, pais com baixo poder aquisitivo não arcariam com a mesma indenização do caso.
MeuAdvogado: Para ingressar com uma ação dessas, o que será necessário usar como prova a fim de evidenciar esse abandono afetivo?
Dra. Ana Paula Pires Trevisan: Considerando-se os julgamentos de casos análogos, verifica-se que a perícia é bastante utilizada, buscando conhecimentos de pessoa apta para analisar os possíveis danos causados pelo genitor que deixou de conviver e prover assistência ao filho, como médicos, psicólogos, assistentes sociais. Desta forma pode ser encontrado o nexo causal. Depoimentos, impressões do próprio filho e testemunhas ajudam na caracterização do tipo, não necessariamente na dimensão do dano.
MeuAdvogado: Qual a importância que você atribui a essa decisão do STJ?
Dra. Ana Paula Pires Trevisan: Como ressaltado anteriormente, nossa legislação é enrijecida ante a necessidade constante de positivação das normas, de acordo com o momento em que a sociedade se encontra. Os entendimentos jurisprudenciais tornam-se vontade manifesta de alteração ou necessidade de renovação. Depois desta decisão, os debates sobre a falta de regulamentação cresceram de tal maneira que o Congresso deu prioridade para a criação de lei que regulamente o assunto.
MeuAdvogado: Esta decisão do STJ desperta a justiça para um problema comum que afeta parte da sociedade? Por quê?
Dra. Ana Paula Pires Trevisan: As famílias monoparentais foram protegidas pelo Direito e não faz tempo. As dissoluções de matrimônios e uniões estáveis ainda são matéria nova em nossa sociedade, pelo menos no campo da aceitação por esta. Assim como o bullying, sempre presente, nem sempre teve a atenção que deveria. A previsão expressa de uma punição e a discussão sobre o assunto também servem como orientação.
MeuAdvogado: Caso a pessoa tenha sofrido com esse abandono afetivo, há um prazo para que ela possa ingressar com uma ação, ou isso independe de idade ou tempo decorrido do abandono?
Dra. Ana Paula Pires Trevisan: De acordo com o artigo 206, parágrafo 3º, Inciso V, do Código Civil, o prazo para ajuizamento de ação de reparação de danos é de 3 anos, contados da data de maioridade do filho, ou da data da emancipação.